Friday, August 29, 2008

Cabeça de Vidro


Conheci um homem que possuía uma cabeça de vidro.
Víamos - pelo lado menos sombrio do pensamento - todo o sistema planetário.
Víamos o tremelicar da luz nas veias e o lodo das emoções na ponta dos dedos. O latejar do tempo na humidade dos lábios.
E a insónia, com seus anéis de luas quebradas e espermas ressequidos.

As estrelas mortas das cidades imaginadas.
Os ossos [tristes] das palavras.


A noite cerca a mão inteligente do homem que possui uma cabeça transparente.
Em redor dele chove.
Podemos adivinhar uma chuva espessa, negra, plúmbea.
Depois, o homem abre a mão, uma laranja surge, esvoaça.
As cidades (como em todos os livros que li) ardem. Incêndios que destroem o último coração do sonho.
Mas aquele que se veste com a pele porosa da sua própria escrita olha, absorto, a laranja.

A queda da laranja provocará o poema?
A laranja voadora é, ou não é, uma laranja imaginada por um louco?
E um louco, saberá o que é uma laranja?
E se a laranja cair? E o poema? E o poema com uma laranja a cair?
E o poema em forma de laranja?
E se eu comer a laranja, estarei a devorar o poema? A ficar louco?
[...]
E a palavra laranja existirá sem a laranja?
E a laranja voará sem a palavra laranja?
E se a laranja se iluminar a partir do seu centro, do seu gomo mais secreto, e alguém a [esquecer] no meio da noite - servirá [o brilho] da laranja para iluminar as cidades há muito mortas? E se a laranja se deslocar no espaço - mais depressa que o pensamento, e muito mais devagar que a laranja escrita - criará uma ordem ou um caos?

O homem que possui uma cabeça de vidro habita o lado de fora das muralhas da cidade.
Foi escorraçado.
[E] na desolação das terras, noite dentro, vigia os seus próprios sonhos e pesadelos. Os seus próprios gestos - e um rosto suspenso na solidão.

Onde mora o homem que ousou escrever com a unha na sua alma, no seu sexo, no seu coração?
E se escreveu laranja no coração, a alma ficará saborosa?
E se escreveu laranja no sexo, o desejo aumentará?

Onde está a vida do homem que escreve, a vida da laranja, a vida do poema - a Vida, sem mais nada - estará aqui?
Fora das muralhas da cidade?
No interior do meu corpo? ou muito longe de mim - onde sei que possuo uma outra razão... e me suicido na tentativa de me transformar em poema e poder, enfim, circular livremente.

Al Berto


Opiário

Ao Senhor Mário de Sá-Carneiro



É antes do ópio que a minh'alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.

Esta vida de bordo há-de matar-me
São dias só de febre na cabeça
E, por mais que procure até que adoeça,
já não encontro a mola pra adaptar-me.


Em paradoxo e incompetência astral
Eu vivo a vincos de ouro a minha vida,
Onda onde o pundonor é uma descida
E os próprios gozos gânglios do meu mal.

É por um mecanismo de desastres,
Uma engrenagem com volantes falsos,
Que passo entre visões de cadafalsos
Num jardim onde há flores no ar, sem hastes.

Vou cambaleando através do lavor
Duma vida-interior de renda e laca.
Tenho a impressão de ter em casa a faca
Com que foi degolado o Precursor.

Ando expiando um crime numa mala,
Que um avô meu cometeu por requinte.
Tenho os nervos na forca, vinte a vinte,
E caí no ópio como numa vala.

Ao toque adormecido da morfina
Perco-me em transparências latejantes
E numa noite cheia de brilhantes,
Ergue-se a lua como a minha Sina.

Eu, que fui sempre um mau estudante, agora
Não faço mais que ver o navio ir
Pelo canal de Suez a conduzir
A minha vida, cânfora na aurora.

Perdi os dias que já aproveitara.
Trabalhei para ter só o cansaço
Que é hoje em mim uma espécie de braço
Que ao meu pescoço me sufoca e ampara.
E fui criança como toda a gente.

Nasci numa província portuguesa
E tenho conhecido gente inglesa
Que diz que eu sei inglês perfeitamente.
Gostava de ter poemas e novelas
Publicados por Plon e no Mercure,
Mas é impossível que esta vida dure.

Se nesta viagem nem houve procelas!
A vida a bordo é uma coisa triste,
Embora a gente se divirta às vezes.
Falo com alemães, suecos e ingleses
E a minha mágoa de viver persiste.


Eu acho que não vale a pena ter
Ido ao Oriente e visto a índia e a China.
A terra é semelhante e pequenina
E há só uma maneira de viver.


Por isso eu tomo ópio. É um remédio
Sou um convalescente do Momento.
Moro no rés-do-chão do pensamento
E ver passar a Vida faz-me tédio.


Fumo. Canso. Ah uma terra aonde, enfim,
Muito a leste não fosse o oeste já!
Pra que fui visitar a Índia que há
Se não há Índia senão a alma em mim?


Sou desgraçado por meu morgadio.
Os ciganos roubaram minha Sorte.
Talvez nem mesmo encontre ao pé da morte
Um lugar que me abrigue do meu frio.

Eu fingi que estudei engenharia.
Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda.
Meu coração é uma avózinha que anda
Pedindo esmola às portas da Alegria.

Não chegues a Port-Said, navio de ferro!
Volta à direita, nem eu sei para onde.
Passo os dias no smokink-room com o conde -
Um escroc francês, conde de fim de enterro.

Volto à Europa descontente, e em sortes
De vir a ser um poeta sonambólico.
Eu sou monárquico mas não católico
E gostava de ser as coisas fortes.

Gostava de ter crenças e dinheiro,
Ser vária gente insípida que vi.
Hoje, afinal, não sou senão, aqui,
Num navio qualquer um passageiro.

Não tenho personalidade alguma.
É mais notado que eu esse criado
De bordo que tem um belo modo alçado
De laird escocês há dias em jejum.

Não posso estar em parte alguma.
A minha Pátria é onde não estou.
Sou doente e fraco.
O comissário de bordo é velhaco.
Viu-me co'a sueca... e o resto ele adivinha.

Um dia faço escândalo cá a bordo,
Só para dar que falar de mim aos mais.
Não posso com a vida, e acho fatais
As iras com que às vezes me debordo.

Levo o dia a fumar, a beber coisas,
Drogas americanas que entontecem,
E eu já tão bêbado sem nada! Dessem
Melhor cérebro aos meus nervos como rosas.

Escrevo estas linhas. Parece impossível
Que mesmo ao ter talento eu mal o sinta!
O facto é que esta vida é uma quinta
Onde se aborrece uma alma sensível.

Os ingleses são feitos pra existir.
Não há gente como esta pra estar feita
Com a Tranquilidade. A gente deita
Um vintém e sai um deles a sorrir.

Pertenço a um gênero de portugueses
Que depois de estar a Índia descoberta
Ficaram sem trabalho. A morte é certa.
Tenho pensado nisto muitas vezes.

Leve o diabo a vida e a gente tê-la!
Nem leio o livro à minha cabeceira.
Enoja-me o Oriente. É uma esteira
Que a gente enrola e deixa de ser bela.

Caio no ópio por força. Lá querer
Que eu leve a limpo uma vida destas
Não se pode exigir. Almas honestas
Com horas pra dormir e pra comer,

Que um raio as parta! E isto afinal é inveja.
Porque estes nervos são a minha morte.
Não haver um navio que me transporte
Para onde eu nada queira que o não veja!

Ora! Eu cansava-me o mesmo modo.
Qu'ria outro ópio mais forte pra ir de ali
Para sonhos que dessem cabo de mim
E pregassem comigo nalgum lodo.

Febre! Se isto que tenho não é febre,
Não sei como é que se tem febre e sente.
O facto essencial é que estou doente.
Está corrida, amigos, esta lebre.

Veio a noite. Tocou já a primeira
Corneta, pra vestir para o jantar.
Vida social por cima! Isso! E marchar
Até que a gente saia pla coleira!

Porque isto acaba mal e há-de haver
(Olá!) sangue e um revólver lá pró fim
Deste desassossego que há em mim
E não há forma de se resolver.


E quem me olhar, há-de-me achar banal,
A mim e à minha vida... Ora! um rapaz...
O meu próprio monóculo me faz
Pertencer a um tipo universal.

Ah quanta alma viverá, que ande metida
Assim como eu na Linha, e como eu mística!
Quantos sob a casaca característica
Não terão como eu o horror à vida?

Se ao menos eu por fora fosse tão
Interessante como sou por dentro!
Vou no Maelstrom, cada vez mais pró centro.
Não fazer nada é a minha perdição.

Um inútil. Mas é tão justo sê-lo!
Pudesse a gente desprezar os outros
E, ainda que co'os cotovelos rotos,
Ser herói, doido, amaldiçoado ou belo!

Tenho vontade de levar as mãos
À boca e morder nelas fundo e a mal.
Era uma ocupação original
E distraía os outros, os tais sãos.

O absurdo, como uma flor da tal Índia
Que não vim encontrar na Índia, nasce
No meu cérebro farto de cansar-se.
A minha vida mude-a Deus ou finde-a ...

Deixe-me estar aqui, nesta cadeira,
Até virem meter-me no caixão.
Nasci pra mandarim de condição,
Mas falta-me o sossego, o chá e a esteira.

Ah que bom que era ir daqui de caída
Pra cova por um alçapão de estouro!
A vida sabe-me a tabaco louro.
Nunca fiz mais do que fumar a vida.

E afinal o que quero é fé, é calma,
E não ter estas sensações confusas.
Deus que acabe com isto! Abra as eclusas —
E basta de comédias na minh'alma!


Álvaro de Campos - 1914

(No Canal de Suez, a bordo)

Génese dos Heterónimos



(...)
"A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histeroneurasténico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação.

Se eu fosse mulher – na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas – cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem – e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia…

Desde criança, tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos.)

Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem eu suponho que sou. Dizia-o, imediatamente, espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura – cara, estatuto, traje e gesto – imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, ouço, sinto, vejo. Repito: ouço, sinto, vejo… E tenho saudades deles."
(...)

Excerto de uma carta a Casais Monteiro, Lisboa, 13 de Janeiro de 1935

Curiosidade: Heteronímia é o estudo dos heterónimos, isto é, estudo de autores fictícios (ou pseudoautores) que possuem personalidade. Termo criado por Fernando Pessoa.

Universo Pessoano: 72 Heterónimos

«Com uma tal falta de gente coexistível, como há hoje, que pode um homem de sensibilidade fazer senão inventar os seus amigos, ou quando menos, os seus companheiros de espírito?» F. Pessoa

ARCA VIVA DO POETA


Hoje constitui o Espólio de Pessoa na Biblioteca Nacional de Lisboa – compreende mais de 25 mil folhas com poesia, peças de teatro, contos, filosofia, crítica literária, traduções, teoria linguística, textos políticos, horóscopos e outros textos sortidos, tanto dactilografados como escritos ou rabiscado ilegivelmente à mão, em Português, Inglês e Francês.

Pessoa escrevia em cadernos de notas, em folhas soltas, no verso de cartas, em anúncios e panfletos, no papel timbrado das firmas para as quais trabalhava e dos cafés que frequentava, em sobrescritos, em sobras de papel e nas margens dos seus textos antigos. Para aumentar a confusão, escreveu sob dezenas de nomes, uma prática – ou compulsão – que começou na infância. Chamou heterónimos aos mais importantes destes “outros”, dotando-os de biografias, características físicas, personalidades, visões políticas, atitudes religiosas e actividades literárias próprias.

Algumas das mais memoráveis obras de Pessoa escritas em Português foram por ele atribuídas aos três principais heterónimos poéticos – Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos – e ao “semi-heterónimo” Bernardo Soares, enquanto que a sua vasta produção de poesia e prosa em Inglês foi, em grande parte, creditada aos heterónimos Alexander Search e Charles Robert Anon, e os seus textos em francês ao solitário Jean Seul. Os seus muitos outros alter-egos incluem tradutores, escritores de contos, um crítico literário inglês, um astrólogo, um filósofo, um frade e um nobre infeliz que se suicidou.

Havia até um seu «outro eu» feminino: uma pobre corcunda com tuberculose chamada Maria José, perdidamente enamorada de um serralheiro que passava pela janela onde ela sempre estava, olhando e sonhando.

Hoje, mais de setenta anos após a morte de Pessoa, o seu vasto mundo literário ainda não está completamente inventariado pelos estudiosos, e uma importante parte das suas obras em prosa continua à espera de ser publicada.